Obra poética de Sousândrade agora em 2 volumes.

Para esta 2ª edição da obra poética de Sousândrade pela editora Anticítera, reuni os cinco livros num só, como um 2º volume da sua poesia completa, cujo primeiro é O Guesa. Aqui estão reunidos os livros Harpas Selvagens, Harpas Eólias, Novo Éden, Harpa de Ouro e Liras Perdidas. Acrescentamos aqui a continuação do canto XII do O Guesa, conhecido como O Guesa, O Zac e o poema teatral Prometeus Encadeado.

Harpas Selvagens foi publicado em 1857 pela editora Laemmert, no Rio de Janeiro, assinado como J. de Souza-Andrade. Em 1870, o poeta reedita esse mesmo livro já com o título Harpas Eólias, com várias alterações nos poemas, justificado pela nota de que seus amigos observaram que as “harpas eram mais selvagens do que eólias”, e que “Harpas Eólias” teria sido a primeira ideia para o título do livro de 1857. Outra edição de Harpas Selvagens, idêntica à edição de 1857, saiu no ano de 1874, dentro de Obras Poéticas, livro que reúne 3 livros do poeta e foi publicado em Nova Iorque. Para esta edição, utilizamos como base a de 1857, com 46 poemas, seguindo orientação apontada por Augusto e Haroldo de Campos no seu Revisão Sousândrade, já que na edição de 1870 intitulada como Harpas Eólias, Sousândrade teria despojado de “muitas soluções criativas” da primeira edição na qual trazia uma poesiacheia de imagens intensas, um imaginismo vigoroso e uma musicalidade e beleza ímpares para retirar as asperezas de seu “estro bárbaro”.

Harpas Eólias vai surgir como livro independente do Harpas Selvagens nessa edição de Obras Poéticas, 1874 como uma série poemas inéditos, enfim, outro livro.

Publicado inicialmente em 1893, Novo Éden é um longo poema que trata das suas paixões e decepções com a formação da República brasileira, capturando as esperanças e desilusões de um Brasil em transformação. O título da obra é emblemático, sugerindo a criação de um novo mundo, um “Éden” renovado através de alegorias. Sete cantos nomeados como sete dias da criação ressaltam a construção de um mundo novo,  como na história mitológica da criação hebraica, temos a história da humanidade em busca da liberdade e justiça. Esse novo mundo é simbolizado pela República, vista como um renascimento e uma purificação das estruturas sociais e políticas do Brasil, é representada pela figura Heleura. E o subtítulo, “Poemeto da adolescência (1888-1889)”, enfatiza que era período bastante jovem da República e imagens como a da liberdade, redenção e justiça aparecem ao longo do poema, para o poeta: valores fundamentais da República. E ao mesmo tempo que tece críticas ao sistema monárquico já destronado e critica as injustiças e abusos do colonialismo e do imperialismo, vistos como antíteses dos ideais republicanos, Sousândrade destaca a promessa de um novo governo mais justo, democrático e igualitário em que a República é o próprio Éden.  Mesmo com alguns arroubos críticos, o poeta se mostra um tanto utópico como a maioria dos republicanos da época, a luta do bem contra o mal, a república como um reino de paz, prosperidade, e igualdade aliado a uma visão progressista de que o futuro seria feito de governos mais livres e justos. O que lembra em vários aspectos o famoso livro de John Milton, Paraíso Perdido. Para a construção da narrativa complexa desse novo Éden que seria a República, Sousândrade mistura o lírico, o épico e o dramático com elementos históricos e mitológicos numa riqueza de linguagem incrível, acentuado pelo imaginismo na criação de imagens vívidas, figuras de linguagem, fragmentação, colagem, montagem, experimentação linguística, neologismos, outras línguas, a mistura do erudito e o popular, o antigo e o moderno, polifonia de vozes,  a intertextualidade que engloba referências bíblicas, e outras clássicas e contemporâneas, inovações estéticas que tornam uma obra multifacetada já que combina estilos literários e influências culturais diversas.

Já a edição do livro Harpa de Ouro e Liras Perdidas é baseada na publicação Inéditos, organizada e resgatada pelos pesquisadores Frederick G. Williams e Jomar Moraes e publicada no Maranhão em 1970 e republicados na edição Poesia e Prosa Reunidas, de 2003. A descoberta do manuscrito desses livros envolve uma série de eventos curiosos como o leitor poderá ver nos textos de abertura. Como os próprios pesquisadores dizem, Harpa de Ouro é uma canção republicana que tece louvações e críticas às falhas da implementação da República no Brasil. Como boa parte do seu trabalho, este também traz elementos autobiográficos, já que era um republicano convicto e oferece uma visão da participação política do Maranhão na vida republicana do país. Além do seu estilo sempre presente, suas experimentações da linguagem, referências históricas, neologismos, anagramas e textos em inglês. Vale lembrar de que também o uso de arcaísmos é sempre proposital pelo poeta, tanto no O Guesa como nos outros livros, é comum encontrar no mesmo poema palavras como ouro e oiro, solidão e soidão, púdico e pudico, etc. Utilizando-se de metáforas, anedotas e referências culturais, Sousândrade constrói uma narrativa única que abraça tanto o idealismo republicano quanto uma visão crítica das injustiças sociais. Deste modo, Harpa de Ouro é mais do que uma obra literária; é um testemunho do fervor republicano de um poeta visionário e destaca suas características intrínsecas e o contexto político-cultural que o envolve. Já Liras Perdidas, composto de 46 poemas com datas que variam de 1855 a 1890 e lugares de escrita diferentes, oferece insights sobre a vida e obra de Sousândrade. O vate demonstra em Lira Perdidas uma mestria singular na manipulação de imagens e sons, que reflete não apenas a complexidade do mundo que o rodeava, mas também uma sensibilidade profunda às nuances da condição humana.

Em geral, sua obra poéticanão é apenas uma coleção de poemas de influência do romantismo, mas também uma jornada visionária através de uma paisagem literária inexplorada no Brasil do século XIX. Sua obra, repleta de inovação e ousadia, situa-se na confluência de correntes literárias e culturais, antecipando tendências que só seriam plenamente reconhecidas décadas mais tarde.

Foi justamente essa revisão da obra do poeta maranhense feita pelos irmãos Campos que o resgatou do limbo literário e destacou sua relevância para a modernidade, viram-no como um precursor das técnicas poéticas modernistas e concretistas, pioneiro no uso de fragmentação textual, colagens linguísticas, aspectos polifônicos, experimentações com a linguagem e a forma que iriam caracterizar a poesia moderna. Além disso, a análise dos Campos destaca a crítica social e política presente na obra de Sousândrade e é vista como uma resposta poética aos conflitos e tensões sociais do Brasil do século XIX, refletindo sobre questões de identidade nacional, colonialismo, injustiça social, como as mazelas da escravidão. Antecipando preocupações com questões sociais e políticas que seria um tema central em muitos movimentos poéticos subsequentes, incluindo a própria poesia concreta. Ainda, o uso de colagens linguísticas, um recurso que os irmãos Augusto e Haroldo de Campos identificaram como precursor da poesia concreta e moderna, cria um efeito quase hipnótico, transportando o leitor para uma dimensão onde a palavra se transforma em pura emoção. Seu experimentalismo, longe de ser um mero exercício estilístico, é profundamente enraizado em um desejo de expressar as complexidades de seu tempo e lugar. Além de uma intensa carga emocional e imagética, oferece uma viagem tanto pelo espaço quanto pelo tempo.

Na maioria dos seus livros, Sousândrade ultrapassa os limites da poesia convencional da época, introduzindo inovações estéticas e técnicas que antecipam movimentos modernistas já que era um mestre na manipulação de figuras de linguagem, na criação de imagens poéticas de rara beleza e originalidade, na sua busca pela síntese, a palavra exata para expressar sentimentos e imagens que transitam entre o real e o onírico, na busca pela ruptura e experimentação, metáforas complexas e jogos de palavras que desafiam a interpretação convencional, além dos ritmos que parecem emular imagens como movimento das ondas do mar, do soprar do vento, imagens que evocam a natureza, o divino, e o humano, entrelaçadas de maneira que o leitor é convidado a navegar por um mar de simbolismos e referências culturais. Mesmo sendo um clichê da crítica sobre Sousândrade, é difícil de não dizer que era um poeta que estava à frente de seu tempo justamente por sua habilidade em fundir forma e conteúdo, aliada à sua audácia em explorar novos territórios poéticos.

Não só por causa do seu famoso livro O Guesa, mas também pelo conjunto de suas obras é que podemos colocar Sousândrade entre os grandes poetas brasileiros já que encontramos em todas elas esses elementos singulares, modernos, com as inovações colocadas de uma maneira tão natural que dá essa grandiosidade e fascina qualquer leitor de poesia. Na sua poesia temos esse diálogo entre a tradição e modernidade, uma poesia rica em simbolismo e crítica, desenha um retrato vívido da nação, revelando as tensões e as esperanças de um país em busca de sua própria essência, enfim, um mosaico cultural que reflete a riqueza e a complexidade da nossa existência, como uma jornada literária que vai além das palavras, que nos faz mergulhar nas profundezas da filosofia, da história e da arte.

Nele encontramos uma poesia que se movimenta com destreza entre o pessoal e o universal, entre o íntimo e o grandioso, o histórico com o mítico, torna sua obra notavelmente rica e multifacetada. Não é à toa que se diz que toda sua poesia é autobiográfica, assim como um bom byroniano que era, seu objetivo era unir poesia e experiência, poesia e vida.

Assim, Sousândrade utiliza sua poesia como um veículo para expressar as inquietudes de uma nação em busca de sua identidade, e consegue, por meio de sua poesia, dar voz aos anseios, medos e esperanças de uma sociedade em ebulição, ao mesmo tempo em que se destaca pelo seu lirismo intenso e pela profundidade com que explora temas universais como o amor, a morte, a natureza e a busca por transcendência. Há uma constante oscilação entre o sublime e o grotesco, o belo e o feio, o sagrado e o profano, que reflete a complexidade da experiência humana.

Nessa reflexão, podemos afirmar que foi um dos primeiros poetas a explorar a fragmentação da narrativa e a livre associação de ideias, técnicas que seriam amplamente utilizadas por escritores posteriores. Outrossim, marca uma ruptura significativa com as tendências literárias da época, até mesmo o uso de arcaísmos é proposital na sua obra. Seu estilo é marcado por uma rara combinação de simbolismo, imagética vívida e uma abordagem quase profética à escrita. Ele rompeu com as convenções poéticas do romantismo, abraçando uma forma mais livre e experimental, refletindo as transformações sociais, políticas e culturais do Brasil e do mundo. Sua complexidade estilística e temática coloca-o ao lado de grandes nomes da poesia mundial. Comparativamente, Sousândrade pode ser visto como um contemporâneo de Walt Whitman nos Estados Unidos, quando se fala de uma similaridade na abordagem livre da forma e na busca por uma expressão poética que captura a essência de uma nação em transformação, e Charles Baudelaire na França. Assim como estes grandes poetas, Sousândrade se esforça para capturar a essência de uma era de mudanças, utilizando uma linguagem que é ao mesmo tempo revolucionária e profundamente enraizada nas tradições literárias.

Sousândrade não se contenta em ser um mero observador da realidade, um flâneur; ele a transforma, moldando-a com as ferramentas de sua arte para revelar verdades mais profundas. E sim, emerge como um elo vital entre o passado e o futuro da poesia, um visionário cuja obra continua a desafiar, inspirar e emocionar. Sua obra, portanto, é mais do que uma coletânea de poemas; é um portal para um mundo onde a linguagem alcança sua mais sublime expressão.

Seus livros não são apenas peças-chaves na história da literatura brasileira; são também obras atemporais que continuam a inspirar e desafiar os leitores. Sãoum convite para embarcar numa viagem literária única, guiada pela visão e pelo talento excepcionais de Sousândrade. Ao lermos seus poemas, somos transportados para um mundo onde a poesia não apenas reflete a realidade, mas também a transforma, abrindo novos caminhos para o entendimento e a expressão do humano.

Claudecir Rocha

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